Relator: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART
Órgão julgador: Turma, j. 09/12/1997).
Data do julgamento: 19 de dezembro de 2006
Ementa
RECURSO – DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DOS AUTORES. PROVIMENTO.
I. CASO EM EXAME
1. Apelação cível interposta pela parte autora contra sentença que julgou improcedente pedido de usucapião extraordinária relativo a dois lotes urbanos, com condenação em custas e honorários, cuja exigibilidade foi suspensa em razão da gratuidade.
II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO
2. As questões em discussão consistem em saber se: (i) houve oposição efetiva apta a afastar a posse mansa e pacífica, em razão do decreto municipal de interesse social e da notificação extrajudicial; (ii) o prazo legal da usucapião pode ser completado no curso do processo e se foi atendido.
III. RAZÕES DE DECIDIR
3. Para fins de aferição da posse mansa/pacífica, “Oposição, no sentido que lhe emprestou o legislador, não significa inconformidade, nem tratativas com o fim ...
(TJSC; Processo nº 0300858-15.2017.8.24.0067; Recurso: recurso; Relator: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART; Órgão julgador: Turma, j. 09/12/1997).; Data do Julgamento: 19 de dezembro de 2006)
Texto completo da decisão
Documento:7033246 ESTADO DE SANTA CATARINA TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Apelação Nº 0300858-15.2017.8.24.0067/SC
RELATORA: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART
RELATÓRIO
Trata-se de apelação interposta por I. A. e E. F. U. em face da sentença de improcedência proferida em "ação de usucapião extraordinária" proposta contra COLONIZADORA BANDEIRANTE LTDA.
Adota-se o relatório elaborado pelo juízo a quo por representar fielmente a realidade dos autos:
I. A. e E. F. U. DA SILVA ajuizaram a presente demanda judicial denominada de "AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA" em face de COLONIZADORA BANDEIRANTE LTDA,. alegando, em suma, que por mais de quinze anos possuem a posse dos Lotes Urbanos ns. 7 e 9, ambos da Quadra 131, com área de 1.000 m² cada um, situados na Rua Querino Scaravonatti, no município de Bandeirante-SC.
Afirmaram que a posse exercida sobre os imóveis é mansa, pacífica e de forma interrupta, sem oposição de terceiros, como se proprietários fossem.
Acrescentaram que durante dez anos o autor Ivar cultivou na área alimentos destinados a sua própria subsistência (feijão, milho e mandioca). A partir do ano de 2014, após conviver em união estável com a requerida Everlei, ambos edificaram uma casa e passaram a residir no local, adicionando que o casal contraiu matrimônio em 13.02.2017.
Com base nesse enredo fático, requereram a procedência do pedido para que seja declarada em seu favor a prescrição aquisitiva do imóvel.
Valoraram à causa em R$ 40.000,00 e postularam pela concessão da justiça gratuita.
Na decisão prolatada no evento 4, deferiu-se a gratuidade judiciária.
Todos os confrontante foram citados pessoalmente (eventos 25 e 100): G. B. e V. G. B., proprietários do Lote Urbano n. 5, matrícula n. 22.257 do CRISMO; e A. D. e Leoni Terezinha Depra, proprietários do Lote Urbano n. 8, matrícula n. 4.968 do CRISMO, os quais não constituíram procurador e nem apresentaram resistência ao pedido.
A União e o Estado de Santa Catarina foram notificados (eventos 14 e 19), mas não apresentaram interesse em participar da presente relação processual.
O Município de Bandeirante, após ser notificado, apresentou contestação no evento 28, informando que os imóveis objetos dessa demanda foram declarados de interesse social pelo Decreto n. 91/2013, ou seja, arguiu que são propriedades de domínio do município e vedada a declaração da prescrição aquisitiva em bens de domínio público.
Acrescentou, ainda, que não houve posse pelo tempo informado na exordial e muito menos exercida da forma mansa e pacífica.
Ao final, pugnou pela improcedência do pedido.
A proprietária registral do imóvel, Colonizadora Bandeirante Ltda., bem como os eventuais e incertos interessados foram todos citados por edital (eventos 9, 13, 27 e 29).
Como não houve constituição de procurador ou apresentação de resposta, foi nomeado curador especial à requerida Colonizadora Bandeirantes Ltda., o qual apresentou contestação do evento 35, por meio de negativa geral.
M. T. Z. C. e P. R. B. apresentaram interesse no feito por serem exequentes da empresa proprietária do bem e requereram a sua inclusão no feito (evento 69), o que foi autorizado na decisão prolatada no evento 85, mas posteriormente peticionaram aos autos declarando não possuir mais interesse no imóvel e aduziram que não se opõem mais ao pedido de prescrição aquisitiva (evento 102)
Aberta a fase instrutória, solenidade realizada em 27.04.2021, foram inquiridas duas testemunhas arroladas pelos autores (evento 168).
Alegações finais apresentadas nos eventos 174 e 176 pelos autores e curador especial, sendo que o Município de Bandeirantes permaneceu inerte ao prazo assinalado (evento 177).
O Ministério Público informou não ser caso para sua atuação como custus legis (eventos 44, 60 e 183).
Vieram-me conclusos os autos.
Concluídos os trâmites, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (evento 185, SENT1):
Ante o exposto, julgo IMPROCEDENTE o pedido formulado na inicial, com fulcro no artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.
Condeno os requerentes ao pagamento das custas e de honorários ao causídico da parte contrária (pro rata), o qual fixo em 15% sobre o valor atribuído à causa, nos moldes do artigo 85, § 2º, do Código de Processo Civil.
SUSPENDO a exigibilidade da verba de sucumbência pelo período de 5 anos, consoante dispõe o artigo 98 do Códex Instrumental Cível.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Transitado em julgado, arquivem-se os autos com as devidas baixas no sistema.
Inconformados com o ato decisório, os autores interpuseram recurso de apelação (evento 200, APELAÇÃO1).
Nas razões recursais, alegaram, em síntese, que: a) "ocupam os lotes há 19 anos"; b) "ainda que contabilizado a partir [...] de 2006, [...] estaria atendido o lapso temporal de 15 anos (2006 a 2021)"; c) "a posse [...,] foi praticada [...] de forma mansa e pacífica"; d) "em que pese a notificação encaminhada pelo Município de Bandeirante no ano de 2013, o Município não tem legitimidade para opor-se à posse de imóvel de propriedade de terceiro (Colonizadora Bandeirante Ltda.)"; e) "o município de Bandeirante declarou os imóveis [...] de interesse social depois que o apelante já os cultivava há mais de dez anos", e "o imóvel não era público [...], nem tampouco se tornou público, pois [...] nunca foi convertido em [...] desapropriação"; f) "o próprio Município [...] informou [...] que não teria mais interesse nos lotes"; g) subsidiariamente, "espera-se que a sentença recorrida seja reformada para julgar extinta a ação por ausência de interesse processual", pois "não estarão impedidos de ter acesso à jurisdição, caso permaneçam na posse dos lotes por mais tempo e tenham condições de produzir novas provas".
Com tais argumentos, formularam os seguintes requerimentos:
32. Diante do exposto, requerem:
a) A dispensa do recolhimento do preparo recursal, em razão da concessão do benefício da justiça gratuita.
b) A reforma da sentença recorrida para julgar procedentes os pedidos iniciais a fim de declarar, em favor dos apelantes, a propriedade sobre os Lotes Urbanos nºs. 7 e 9, ambos da quadra 131, com área de 1.000m² cada um, situados na Rua Querino Scaravonatto, no município de Bandeirante/SC, eis que restou demonstrado que foram cumpridos todos os requisitos legais da usucapião.
c) Caso o entendimento do Tribunal não seja pela procedência dos pedidos iniciais, requerem seja a sentença reformada para que a ação seja julgada sem resolução de mérito, sendo extinta por ausência de interesse processual (art. 485, VI, do CPC).
d) Sejam os apelados condenados a pagar os ônus sucumbenciais e honorários advocatícios.
Intimados, os réus exerceram o contraditório (evento 218, CONTRAZ1 e evento 220, CONTRAZAP1).
Por fim, vieram os autos para análise.
VOTO
1. Preliminares
Não há preliminares em contrarrazões para análise.
2. Admissibilidade
Presentes os pressupostos legais, admite-se o recurso.
3. Mérito
Passa-se ao exame do mérito.
O juízo a quo rejeitou a pretensão da parte autora com base em fundamentos assim expostos (evento 185, SENT1):
Trata-se de ação de usucapião em que os autores objetivam a declaração do domínio da propriedade dos Lotes Urbanos ns. 7 e 9, ambos da quadra 131, do Município de Bandeirante, com 1.000 m² cada um, registrados respectivamente sob as matrículas 34.886 e 34.887 do Cartório de Imóveis de São Miguel do Oeste.
Em prelúdio, cumpre salientar que embora averbado na matrícula dos referidos imóveis a declaração de interesse social para fins de desapropriação amigável ou judicial pelo Município de Bandeirante, até a presente dada não houve desapropriação. Logo, os bens ainda não são de domínio público, ou seja, não há qualquer óbice ou vedação legal que impeça a declaração da prescrição aquisitiva dos imóveis.
A propósito, tal matéria já foi abordada nos autos no evento 46, in verbis:
I – Da declaração de interesse social para fins de desapropriação
Na presente demanda a parte autora pretende usucapião do Lote Urbano nº 07, matrícula 34.886 e Lote Urbano nº 09, matrícula 34.887, ambos do CRI desta Comarca.
Observo, todavia, que sobreveio contestação às pp. 57-65 do Município de Bandeirante onde há a informação de que os imóveis pleiteados pelo autor foram declarados de interesse social por meio do Decreto Municipal nº 091/2013 (pp. 69-70), isso em 07.08.2013. Além disso, arguiu que sobre imóvel público não é cabível usucapião.
Todavia, a parte autora afirmou que até a data em que foi lavrado o decreto mencionado, já havia cumprido os requisitos para a usucapião extraordinária reduzida/pro labore (art. 1.238, parágrafo único, do CC/2002).
A título de argumentação, desde já, saliento que entendo não ser cabível a extinção da presente ação em detrimento do interesse municipal, até porque a declaração de interesse social não foi convertida em ato fático de desapropriação e, é relativa à questão discricionária não interferindo para obstar, num primeiro momento, na presente usucapião.
Ressalto que mesmo que se reconheça a aquisição da propriedade pela presente usucapião, nada impede que posteriormente, o ente Municipal intente ação desapropriação, momento em que o anterior possuidor (autor desta ação de usucapião) poderá reclamar pedido indenizatório.
Realizada tal ponderação e não havendo qualquer outra questão processual pendente de apreciação, passo a enfrentar a matéria de fundo.
A pretensão dos autores se funda no usucapião extraordinário, sendo que para a procedência do pedido devem ser preenchidos os seguintes pressupostos: a) posse mansa, pacífica e ininterrupta, independente de justo título; b) animus domini; e c) lapso temporal de quinze anos ou de dez anos, neste último caso se for demonstrada a utilização do bem como moradia habitual, ou, alternativamente, realização de obras ou serviços de caráter produtivo.
Prescreve o artigo 1.238 do Código Civil:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Consoante pode ser extraído a petição inicial, os autores sustentam que entre os anos de 2002 até 2014, ou seja, durante 12 anos, a posse era exercida exclusivamente pelo requerente I. A., decorrentes da limpeza dos terrenos e utilização da área para plantação de alimentos para sua própria subsistência.
Acrescenta a exordial que no ano de 2014, quando os requerentes já estavam em união estável, edificaram uma casa e passaram a residir no local, aduzindo que utilizam o resto da área para cultivo de alimentos.
A peça inaugural também descreve que a posse sempre foi exercida de forma mansa e pacífica, sem oposição de terceiros.
Todavia, essa última arguição é derruída pelos próprios documentos juntados com a petição inicial, já que no ano de 2013, ou seja, antes mesmo da edificação da casa, o Município de Bandeirante notificou o casal demandante para desocupar os imóveis e para que não realizassem qualquer construção no local (evento 1 - Informação 11).
Em outras palavras, a posse exercida pelos requerentes foi contestada no ano de 2013, não passando mais a ser exercida de forma mansa e pacífica.
Destarte, caso considerada como verdadeira a arguição de que a posse iniciou-se em 2002, percebe-se de forma cristalina que ela foi exercida de forma mansa e pacífica até o ano de 2013, quando foram notificados pelo Município de Bandeirante, ou seja, a posse exercida sem oposição de terceiros foi de apenas onze anos, o que impede a declaração da prescrição aquisitiva pela modalidade do usucapião extraordinário.
Como se não bastasse, durante a instrução do processo, as testemunhas inquiridas mencionaram a expressão de que faria aproximadamente quinze anos que o requerente Ivar iniciou atos de posse, inicialmente com a limpeza dos terrenos e plantação de alimentos.
Considerando que as testemunhas se referiram aos anos pretéritos contados a partir da audiência de instrução e julgamento, esta realizada no curso desse ano, nota-se de forma clara que os testigos referiram que a posse iniciou no ano de 2006.
Destarte, mesmo que considerarmos que a posse tenha sido exercida de forma mansa e pacífica, o prazo de seu exercício até o ajuizamento da demanda computava apenas onze anos, interregno inferior aos quinze anos exigidos em lei.
Entretanto, a questão vai além da ocorrência de existência de oposição da posse e de seu exercício por prazo inferior ao prescrito em lei, concernente a um ponto importantíssimo e que ainda permanecem uma incógnita: A plantação inicialmente cultiva pelo requerente I. A. abrangia os dois imóveis ou apenas a um deles?
Sobre esta questão, importante também enfatizar que as testemunhas não apresentaram certeza em relação ao tempo em que a área usucapienda foi utilizada exclusivamente como plantação, ou seja, no interregno envolvendo os anos de 2006 até 2014.
A testemunha Veronice Grison Basso iniciou dizendo que há quinze anos os autores exercem a posse dos imóveis, inicialmente limpavam e plantavam e depois acabaram por edificar uma casa em que passaram a residir.
Após ser indagada sobre as fotografias retiradas do local no ano de 2012 pelo Google Maps, colacionadas no evento 69, a testemunha titubeou e passou a relatar que antes do requerente morar no local, a área usucapienda era formada por capoeira, trazendo severas dúvidas sobre a existência de cultivo antes da construção da casa.
Acrescenta-se, ainda, que ambas as testemunhas ouvidas apresentaram um relato muito superficial, com poucos detalhes, concernente ao período em que a parte autora alega ter iniciado sua posse por meio de cultivo de alimentos, não se extraindo a certeza necessária sobre eventual posse exercida antes do ano de 2014.
Destarte, pelos elementos probatórios existentes nos autos, o que pode se extrair de concreto é que a posse somente passou a ser exercida no ano de 2014, mesmo contestada, após a construção da casa no local.
Portanto, de forma cristalina e muito tranquila percebe que os requisitos descritos no artigo 1.238 do Código Civil não foram preenchidos. Logo, a improcedência do pedido é medida inarredável, notadamente pela parte autora não ter cumprido com o ônus descrito no artigo 373, inciso I, do mesmo diploma legal.
Por meio do recurso, os autores/apelantes buscam, em síntese, a reforma da sentença, para que seja julgado procedente o pedido de declaração da prescrição aquisitiva do imóvel em seu favor.
Para tanto, alegam, em síntese, que: a) "ocupam os lotes há 19 anos"; b) "ainda que contabilizado a partir [...] de 2006, [...] estaria atendido o lapso temporal de 15 anos (2006 a 2021)"; c) "a posse [...,] foi praticada [...] de forma mansa e pacífica"; d) "em que pese a notificação encaminhada pelo Município de Bandeirante no ano de 2013, o Município não tem legitimidade para opor-se à posse de imóvel de propriedade de terceiro (Colonizadora Bandeirante Ltda.)"; e) "o município de Bandeirante declarou os imóveis [...] de interesse social depois que o apelante já os cultivava há mais de dez anos", e "o imóvel não era público [...], nem tampouco se tornou público, pois [...] nunca foi convertido em [...] desapropriação"; f) "o próprio Município [...] informou [...] que não teria mais interesse nos lotes"; g) subsidiariamente, "espera-se que a sentença recorrida seja reformada para julgar extinta a ação por ausência de interesse processual", pois "não estarão impedidos de ter acesso à jurisdição, caso permaneçam na posse dos lotes por mais tempo e tenham condições de produzir novas provas".
O caso, antecipa-se, é de provimento.
Como é cediço, a usucapião é modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos reais suscetíveis de exercício continuado pela posse prolongada no tempo, acompanhada de certos requisitos exigidos pela lei. Nesse sentido, destaca-se:
“O fundamento desse modelo jurídico é dúplice: representa um prêmio àquele que por um período significativo imprimiu ao bem uma aparente destinação de proprietário; mas também importa em sanção ao proprietário desidioso e inerte que não tutelou o seu direito em face da posse exercida por outrem. Por isso a sentença de procedência da ação de usucapião apenas reconhece o domínio adquirido com a satisfação dos requisitos legais.” (FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil: Reais. 13ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 394).
Assim, no ordenamento civil brasileiro, a posse, associada ao tempo de exercício, é requisito fundamental para a declaração de domínio por usucapião. Imperativa, porém, é a sua caracterização como posse ad usucapionem, exigindo a lei, em primeiro lugar, a comprovação do ânimo de dono, ou seja, a atitude ativa no sentido do exercício dos poderes inerentes à propriedade, comportando-se o autor ostensivamente perante terceiros como se comportaria o proprietário. O segundo requisito é a continuidade da posse, isto é, ela deve ser exercida de modo ininterrupto, além de público, e pelo lapso temporal prescrito em lei. Finalmente, como terceiro requisito, exige-se que a posse seja mansa e pacífica, exercida, pois, sem oposição.
Assim dispõe o art. 1.238 do Código Civil:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
O juízo a quo julgou improcedente o pedido formulado na petição inicial, entendendo que não restaram comprovadas a posse mansa, pacífica e ininterrupta, tampouco o decurso do lapso temporal necessário à configuração da prescrição aquisitiva. Fundamentou-se, em síntese, nos seguintes pontos: a) a posse teria sido contestada em 2013, perdendo o caráter manso e pacífico em razão da notificação extrajudicial enviada pelo Município de Bandeirante, solicitando a desocupação dos imóveis e a abstenção de novas edificações; b) não se teria verificado o decurso do prazo de quinze anos, pois: b.1) considerando-se o início da posse em 2002, esta teria perdurado apenas onze anos até a oposição municipal em 2013; b.2) conforme os depoimentos colhidos, a posse teria se iniciado, na realidade, em 2006, o que não perfaz o prazo necessário até o ajuizamento da ação; b.3) os elementos probatórios indicariam que a posse efetiva apenas se consolidou em 2014, já sob contestação, após a construção da residência no local.
Todavia, tal conclusão não se coaduna com a realidade processual evidenciada nos autos.
A oposição ao exercício da posse ad usucapionem, capaz de interromper o curso do prazo da prescrição aquisitiva e de afastar o caráter manso e pacífico da posse, é somente aquela de natureza efetiva, apta a cessar, de forma concreta, o exercício das faculdades de uso e/ou gozo do imóvel pelo(s) usucapiente(s).
Não basta, para afastar a qualidade de posse mansa e pacífica, por exemplo, a simples entrega de uma carta de protesto ou uma contestação verbal passageira, solicitando que o usucapiente o desocupe, pois nenhuma dessas medidas é capaz de cessar, de fato, o exercício dos direitos possessórios.
Sobre o tema, extrai-se da jurisprudência do STJ:
“Oposição, no sentido que lhe emprestou o legislador, não significa inconformidade, nem tratativas com o fim de convencer alguém a demitir-se de si a posse de determinado imóvel. Antes, isso sim, traduz medidas efetivas, perfeitamente identificáveis na área judicial, visando quebrar a continuidade da posse, opondo à vontade do possuidor uma outra vontade que lhe contesta o exercício dos poderes inerentes ao domínio qualificador da posse [...] (“Tratado de Usucapião”, 1992, v. 1. N. 178, p. 656)” (STJ, REsp n. 53.800/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, j. 09/12/1997).
Assim, no caso concreto, não se pode considerar contestada a posse exercida pelos autores (e, portanto, insuficiente para a aquisição originária da propriedade) pelo fato de o Município ter declarado os imóveis de interesse social e manifestado a intenção de ocupá-los para fins de futura desapropriação, pois tais atos não configuram, por si sós, medidas efetivas ou concretas de oposição ao exercício da posse ad usucapionem. A efetiva oposição somente se caracterizaria com o ajuizamento da competente ação de desapropriação, voltada à ocupação coativa do bem pelo Poder Público, o que não ocorreu.
Ademais, o próprio Município veio autos declarar, expressamente, e antes da sentença, que não possui mais interesse na desapropriação do imóvel usucapiendo, o que deixa evidente a falta de qualquer oposição estatal ao exercício da posse ad usucapionem pelo autor.
A lógica é a mesma que se verifica quando uma ação possessória é proposta contra o usucapiente no curso da posse ad usucapionem, antes da consumação do prazo legal de usucapião: a citação do usucapiente na ação possessória, em um primeiro momento, interrompe o curso da prescrição aquisitiva, por tornar a posse ad usucapionem contestada. Entretanto, se a ação possessória vem a ser julgada improcedente, a contestação da posse ad usucapionem, inicialmente configurada pela citação, não se confirma de forma efetiva, deixando, portanto, de ser considerada para fins de aferição do caráter manso e pacífico da posse exercida pelo usucapiente.
Afinal, é certo que a ação possessória julgada improcedente não tem o condão de retirar do usucapiente a posse que exerce, ainda que, em um primeiro momento, pudesse tê-lo feito.
Nesse sentido:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. USUCAPIÃO SUSCITADA EM DEFESA. AÇÃO POSSESSÓRIA JULGADA IMPROCEDENTE. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. EFEITO INTERRUPTIVO. AUSÊNCIA. PRECEDENTES DE AMBAS AS TURMAS INTEGRANTES DA SEGUNDA SEÇÃO. 1. Segundo a jurisprudência dominante desta Corte, a citação promovida em ação possessória julgada improcedente não interrompe o prazo para a aquisição da propriedade pela usucapião. 2. Agravo regimental não provido (AgRg no REsp n. 944.661/MG, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 13/8/2013, DJe de 20/8/2013).
Logo, embora, num primeiro momento, o Poder Público tenha esboçado a intenção de retirar os autores da posse do imóvel usucapiendo, é certo que, posteriormente, essa intenção foi expressamente descartada pelo próprio ente público, sem que se seguisse qualquer providência concreta para sua efetivação (ajuizamento da competente ação de desapropriação), o que equivale, na prática, à hipótese de ajuizamento de uma ação possessória posteriormente julgada improcedente, pois, em ambos os casos citados, a oposição apenas aparente à posse ad usucapionem não se tornou efetiva.
Daí a conclusão de que a posse exercida pelos autores é mansa e pacífica, nas circunstâncias específicas apuradas, em sentido contrário ao que consta da sentença.
Resta, portanto, verificar o atendimento do requisito temporal necessário à configuração da usucapião.
Nesse contexto, impõe-se esclarecer, desde logo, a possibilidade de considerar o período decorrido durante a tramitação da demanda, uma vez que cabe ao magistrado avaliar o requisito temporal da usucapião ao julgar a ação, levando em conta o fato constitutivo verificado após a sua propositura (art. 493 do CPC).
Referida orientação evita que os autores sejam compelidos a ajuizar nova demanda para obter direito que poderia ter sido reconhecido caso o Além disso, cumpre ressaltar que eventual contestação apresentada não impede o decurso do lapso temporal, uma vez que a referida peça defensiva não se destina a demonstrar resistência à posse exercida, limitando-se a impugnar a aquisição do imóvel por usucapião.
Nessa hipótese, a oposição incide exclusivamente sobre o direito de aquisição pleiteado, sem alcançar a posse propriamente dita. Aliás, não houve qualquer alegação de que a posse exercida pelos autores tenha sido interrompida ou prejudicada ao longo do curso da demanda.
Esse, aliás, é o entendimento do STJ:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. PRAZO. IMPLEMENTAÇÃO. CURSO DA DEMANDA. POSSIBILIDADE. FATO SUPERVENIENTE. ART. 493 DO CPC/2015. CONTESTAÇÃO. INTERRUPÇÃO DA POSSE. INEXISTÊNCIA. INOVAÇÃO RECURSAL. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. 1. Cinge-se a controvérsia a definir se é possível o reconhecimento da usucapião de bem imóvel na hipótese em que o requisito temporal (prazo para usucapir) previsto em lei é implementado no curso da demanda. 2. O prazo, na ação de usucapião, pode ser completado no curso do processo, em conformidade com o disposto no art. 493 do CPC/2015. Precedentes. 3. A contestação não tem a capacidade de exprimir a resistência do demandado à posse exercida pela parte autora, mas apenas a sua discordância com a aquisição do imóvel pela usucapião. Precedentes. 4. A alegação tardia de tese em agravo interno configura inovação recursal, insuscetível de exame diante da preclusão consumativa. 5. Agravo interno não provido (AgInt no REsp n. 1.948.445/MS, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 16/12/2024, DJEN de 20/12/2024.)
Dessa forma, considerando o lapso temporal decorrido até o presente julgamento, verifica-se o pleno atendimento do requisito temporal, independentemente do marco inicial adotado.
Diante disso, estando plenamente preenchidos todos os requisitos legais da usucapião extraordinária, impõe-se o provimento do recurso para reformar a sentença recorrida, reconhecendo a aquisição originária da propriedade dos imóveis em favor dos autores.
4. Sucumbência
Provido o recurso dos autores, altera-se o resultado do julgamento (art. 1.008 do CPC), que passa a ser de procedência integral dos pedidos formulados na petição inicial.
Como consequência, inverte-se a distribuição dos encargos de sucumbência fixados na sentença.
Destaca-se, no ponto, que "A redistribuição dos ônus sucumbenciais, com a alteração dos honorários advocatícios sucumbenciais fixados na origem, é mera consequência lógica do julgamento do recurso" (STJ, AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.212.029/DF, Rel. Min. Humberto Martins, Terceira Turma, j. 28/8/2023), que deve ser implementada pelo órgão julgador (arts. 85, caput, e 1.008 do CPC) independentemente de pedido expresso da parte interessada (art. 322, § 1º, do CPC), não caracterizando decisão ultra ou extra petita (arts. 142, 490, 492 e 1.013, § 1º, do CPC).
Registra-se, oportunamente, que, havendo provimento do recurso, ainda que parcial, é descabida a majoração de honorários (art. 85, §º 11, do CPC), conforme Tema Repetitivo n. 1.059 do STJ e EDcl no AgInt no REsp 1.573.573/RJ.
Caso decorram de vitória da parte assistida pela Defensoria Pública, os honorários são devidos ao Fundo de Reaparelhamento da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina – FADEP/SC, nos termos dos arts. 4º, XXI, da LC n. 80/1994, 4º, XIX, da LC Estadual n. 575/2012, 2º da Lei Estadual n. 17.870/2019 e 1º da Resolução CSDPESC n. 119/2022, e do Tema de Repercussão Geral n. 1.002 do STF.
Por fim, ressalva-se a suspensão de exigibilidade das verbas sucumbenciais, na forma e pelo prazo prescritos no art. 98, § 3º, do CPC, caso a parte condenada ao pagamento seja beneficiária da gratuidade da justiça.
DISPOSITIVO
Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e dar-lhe provimento, a fim de: a) julgar procedente o pedido de usucapião, a fim de declarar a aquisição originária da propriedade, pelas partes autoras, dos imóveis indicados na petição inicial; b) redistribuir as verbas sucumbenciais.
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Documento:7033247 ESTADO DE SANTA CATARINA TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Apelação Nº 0300858-15.2017.8.24.0067/SC
RELATORA: Desembargadora FERNANDA SELL DE SOUTO GOULART
EMENTA
EMENTA: DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DOS AUTORES. PROVIMENTO.
I. CASO EM EXAME
1. Apelação cível interposta pela parte autora contra sentença que julgou improcedente pedido de usucapião extraordinária relativo a dois lotes urbanos, com condenação em custas e honorários, cuja exigibilidade foi suspensa em razão da gratuidade.
II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO
2. As questões em discussão consistem em saber se: (i) houve oposição efetiva apta a afastar a posse mansa e pacífica, em razão do decreto municipal de interesse social e da notificação extrajudicial; (ii) o prazo legal da usucapião pode ser completado no curso do processo e se foi atendido.
III. RAZÕES DE DECIDIR
3. Para fins de aferição da posse mansa/pacífica, “Oposição, no sentido que lhe emprestou o legislador, não significa inconformidade, nem tratativas com o fim de convencer alguém a demitir-se de si a posse de determinado imóvel. Antes, isso sim, traduz medidas efetivas, perfeitamente identificáveis na área judicial, visando quebrar a continuidade da posse" (“Tratado de Usucapião”, 1992, v. 1. N. 178, p. 656)” (STJ, REsp n. 53.800/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, j. 09/12/1997).
4. No caso, a declaração de interesse social para fins de desapropriação, manifestada pelo Poder Público municipal, não serve, por si só, como oposição à posse ad usucapionem, seja porque não foi seguida de nenhuma medida efetiva para fazer cessar o exercício das faculdades de uso e/ou gozo pelos autores, seja porque o próprio Poder Público declarou nos autos, de forma expressa e antes da sentença, não ter mais interesse nos imóveis.
5. O prazo de usucapião aplicável na hipótese (art. 1.238, parágrafo único, do CC) se consumou integralmente, considerando o tempo de posse exercida no curso da demanda (art. 493 do CPC), que é incontroverso e dispensa comprovação complementar (art. 374, III, do CPC), por ter sido afirmado pelos autores nas razões recursais e não impugnado nas contrarrazões.
6. Comprovados animus domini, continuidade, publicidade e inexistência de oposição efetiva, estão preenchidos os requisitos da usucapião extraordinária.
IV. DISPOSITIVO
7. Recurso da parte autora provido, a fim de reformar a sentença e julgar procedente o pedido de usucapião, invertendo-se os ônus da sucumbência.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 8ª Câmara de Direito Civil do decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, a fim de: a) julgar procedente o pedido de usucapião, a fim de declarar a aquisição originária da propriedade, pelas partes autoras, dos imóveis indicados na petição inicial; b) redistribuir as verbas sucumbenciais, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Florianópolis, 11 de novembro de 2025.
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Extrato de Ata EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL - RESOLUÇÃO CNJ 591/24 DE 11/11/2025 A 17/11/2025
Apelação Nº 0300858-15.2017.8.24.0067/SC
RELATOR: Desembargador Substituto MARCELO PONS MEIRELLES
PRESIDENTE: Desembargadora ELIZA MARIA STRAPAZZON
PROCURADOR(A): BASILIO ELIAS DE CARO
Certifico que este processo foi incluído como item 30 na Pauta da Sessão Virtual - Resolução CNJ 591/24, disponibilizada no DJEN de 27/10/2025, e julgado na sessão iniciada em 11/11/2025 às 00:00 e encerrada em 11/11/2025 às 15:39.
Certifico que a 8ª Câmara de Direito Civil, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:
A 8ª CÂMARA DE DIREITO CIVIL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO, A FIM DE: A) JULGAR PROCEDENTE O PEDIDO DE USUCAPIÃO, A FIM DE DECLARAR A AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE, PELAS PARTES AUTORAS, DOS IMÓVEIS INDICADOS NA PETIÇÃO INICIAL; B) REDISTRIBUIR AS VERBAS SUCUMBENCIAIS.
RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador Substituto MARCELO PONS MEIRELLES
Votante: Desembargador Substituto MARCELO PONS MEIRELLES
Votante: Desembargador EMANUEL SCHENKEL DO AMARAL E SILVA
Votante: Desembargadora ELIZA MARIA STRAPAZZON
JONAS PAUL WOYAKEWICZ
Secretário
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